8
febrero 2002

Helena
 
de Sousa
 
 Freitas

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A SAUDADE




  VIAJA

SEGUNDO
QUEM

 

Já me esquecera de como é viajar no segundo piso de um Expresso, da sensação de proximidade ao tecto das estações rodoviárias que temos aqui de cima.

Seguem hoje comigo pessoas que se dirigem aos quatro cantos da Terra. Animadas descrevem as viagens que já fizeram, dando-lhes contornos distintos e pinceladas alegres e coloridas para que o senhor do banco ao lado consiga visualizar a cena e invejar uma pontinha. Sonhadoras, discorrem acerca dos planos traçados para a que agora realizam e para as próximas que, "assim Deus dê saúde e fortuna", virão a efetuar.

Tenta-se enganar o cansaço dos membros, que adivinham já a lonjura do destino e o clima de taciturna introspecção característico dos transportes públicos, mantendo aceso o tom das conversas. Contam-se casos de pessoas que se viram pela primeira e última vez numa viagem como a de hoje. Pessoas que aqui se encontraram e aqui se perderam. Amizades sinceramente descobertas, mas que se sabem com as horas contadas pelo tempo de um trajecto quilometrado. E a magia que permanece... E a pena que fica para a posteridade e se vai transformando em saudade e numa angustiante sensação de perda... O eterno e amargo encanto de todos os laços forçados, pela sua própria natureza, a quebrarem-se cedo de mais.

Como é ansiado um reencontro!.. Como gostavam de se tornar a ver, nem que só mais uma vez, nem que só para relembrar o rosto e a voz. Um desejo crescente e inexprimível de descobrir se a imagem amarelecida que perdura na arca empoada memória ainda se ajusta à realidade. Não há dúvida: a nossa vida é um processo contínuo e doloroso de habituação à saudade. A nossa existência é a da própria saudade, e o nosso tempo é empregue em tentativas infrutíferas de a ignorar.

Mas também se encontravam neste autocarro alguns daqueles «viajantes de profissão», talvez mais resistentes à saudade, que estão habituados a seguir a pé pelos trilhos de escuteiros e caminhos de peregrinos, com as tendas a pesarem-lhes nas costas, o corpo afastado da água durante dias e um rafeiro por única companhia.

Têm visto um pouco de tudo por este mundo fora, mas isso não os faz desistir de procurar novos desafios e razões e de se cansarem nas distâncias, nem lhes apaga o brilho aventureiro do olhar. São eternos caminheiros, quer por vontade do destino, quer por uma sina de inquietude que lhes domina os membros.

Coleccionam pelo corpo recordações de cada paragem, evidenciando-se os cabelos à rastafarian, as tatuagens no ventre e o anel no dedo mindinho do pé. Do mesmo modo, as roupas espelham lembranças de outras terras e gentes, como o testemunham o cheiro a especiarias das túnicas indianas e o halo místico dos xailes do Perú.

São capazes de se aguentar dias inteiros na prática da dança do ventre, do reggae, do flamenco, ou de outro desses ritmos quentes que alvoroçam a mente e sacodem os ossos até à exaustão, sem contudo apresentarem quaisquer sinais de rendição.

Aprenderam truques de faquir, de controlo da respiração e a atravessar passadeiras de carvão incandescente sem que a sensibilidade se afecte. Conseguem ainda uma surpreendente fluência em alguns dialectos de África e da América Latina.

Para ganhar para o sustento, durante as caminhadas vão elaborando inúmeras e minuciosas peças de artesanato. E o certo é que possuem não só um talento inato e fascinante nas mãos bronzeadas mas também a criatividade necessária para um eficaz aproveitamento de todo o tipo de materiais.

Eu saio a meio caminho por assim dizer. A maioria dos passageiros ainda terá que trocar de transporte várias vezes até à conclusão da viagem. Há quem considere essas mudanças atribuladas da bagagem de um transporte para o outro como um dos episódios mais divertidos da arte de bem viajar!..

Agora sigo pelas ruas, orientada pelo Sol e pelos sorrisos que se abrem nos rostos despreocupados dos turistas, eu e eles em visita à cidade-museu de Portugal. Por todo o lado me cercam idiomas distintos, em frases exclamativas que soam a diversidade cultural. E pensar que no Inverno é necessário o andar apressado e as conversas ruidosas dos universitários para que o silêncio e a calma das ruas se quebre.

Mas desta feita estou só de passagem. Daqui a poucas horas volto para casa e, ao gosto da imaginação e das lembranças, vou poder rever os estudantes ondeando por entre os autocarros, com as malas coloridas erguidas à cabeça qual varina carregando a sua canastra. O espectáculo inesquecível das tardes de sexta-feira, em que uma chuva multicolor caía sobre a estação rodoviária.

São dezanove horas quando entro no Expresso, presenciando as situações comuns a estes momentos que também eu vivi: uns vão despedir-se dos familiares que partem atravancados pela bagagem e pelas últimas recomendações, outros vêm receber parentes e amigos, aliviando-os do peso das malas e carregando-os de sorrisos de boas-vindas.

Alguns são emigrantes que terminaram as férias, aproveitadas numa visita à terra natal, e regressam agora à sua vida rotineira num país longínquo, sentindo um peso maior na mala que guarda a nostalgia antecipada do que naquela onde levam os agasalhos e as especialidades locais.

Escolho novamente o segundo piso, o que me permite apreciar o crepúsculo: lentamente apagam-se as sombras das árvores sobre a planície e no céu fundem-se rasgos nublosos que variam do rosa ao violeta, intercalando tons de laranja e vermelho num fundo azul turquesa. O declínio prossegue até que a noite se impõe e a Lua, antes sumida no horizonte, ganha luz suficiente para banhar os montados que ladeiam a estrada.

Na rádio tocam "Os Filhos da Nação", "Maio Maduro Maio" e todo o "Miracles" de Kenny G. enquanto eu atento vagamente nos faróis dos automóveis que circulam nos dois sentidos da via. Nesse instante, na escuridão, lembram isqueiros acesos num concerto ao vivo.

Não tardo a ser invadida por uma sonolência de que só me liberto por volta das vinte e uma horas, ao chegar a uma estação sem esperas, numa cidade que nem sempre considero minha.

 

© Helena de Sousa Freitas

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