Já me esquecera de como é viajar no segundo piso
de um Expresso, da sensação de proximidade ao
tecto das estações rodoviárias que temos
aqui de cima.
Seguem hoje comigo pessoas que se dirigem aos quatro cantos
da Terra. Animadas descrevem as viagens que já fizeram,
dando-lhes contornos distintos e pinceladas alegres e coloridas
para que o senhor do banco ao lado consiga visualizar a cena
e invejar uma pontinha. Sonhadoras, discorrem acerca dos planos
traçados para a que agora realizam e para as próximas
que, "assim Deus dê saúde e fortuna",
virão a efetuar.
Tenta-se
enganar o cansaço dos membros, que adivinham já
a lonjura do destino e o clima de taciturna introspecção
característico dos transportes públicos, mantendo
aceso o tom das conversas. Contam-se casos de pessoas que se
viram pela primeira e última vez numa viagem como a de
hoje. Pessoas que aqui se encontraram e aqui se perderam. Amizades
sinceramente descobertas, mas que se sabem com as horas contadas
pelo tempo de um trajecto quilometrado. E a magia que permanece...
E a pena que fica para a posteridade e se vai transformando
em saudade e numa angustiante sensação de perda...
O eterno e amargo encanto de todos os laços forçados,
pela sua própria natureza, a quebrarem-se cedo de mais.
Como
é ansiado um reencontro!.. Como gostavam de se tornar
a ver, nem que só mais uma vez, nem que só para
relembrar o rosto e a voz. Um desejo crescente e inexprimível
de descobrir se a imagem amarelecida que perdura na arca empoada
memória ainda se ajusta à realidade. Não
há dúvida: a nossa vida é um processo contínuo
e doloroso de habituação à saudade. A nossa
existência é a da própria saudade, e o nosso
tempo é empregue em tentativas infrutíferas de
a ignorar.
Mas
também se encontravam neste autocarro alguns daqueles
«viajantes de profissão», talvez mais resistentes
à saudade, que estão habituados a seguir a pé
pelos trilhos de escuteiros e caminhos de peregrinos, com as
tendas a pesarem-lhes nas costas, o corpo afastado da água
durante dias e um rafeiro por única companhia.
Têm
visto um pouco de tudo por este mundo fora, mas isso não
os faz desistir de procurar novos desafios e razões e
de se cansarem nas distâncias, nem lhes apaga o brilho
aventureiro do olhar. São eternos caminheiros, quer por
vontade do destino, quer por uma sina de inquietude que lhes
domina os membros.
Coleccionam
pelo corpo recordações de cada paragem, evidenciando-se
os cabelos à rastafarian, as tatuagens no ventre e o
anel no dedo mindinho do pé. Do mesmo modo, as roupas
espelham lembranças de outras terras e gentes, como o
testemunham o cheiro a especiarias das túnicas indianas
e o halo místico dos xailes do Perú.
São
capazes de se aguentar dias inteiros na prática da dança
do ventre, do reggae, do flamenco, ou de outro desses ritmos
quentes que alvoroçam a mente e sacodem os ossos até
à exaustão, sem contudo apresentarem quaisquer
sinais de rendição.
Aprenderam
truques de faquir, de controlo da respiração e
a atravessar passadeiras de carvão incandescente sem
que a sensibilidade se afecte. Conseguem ainda uma surpreendente
fluência em alguns dialectos de África e da América
Latina.
Para
ganhar para o sustento, durante as caminhadas vão elaborando
inúmeras e minuciosas peças de artesanato. E o
certo é que possuem não só um talento inato
e fascinante nas mãos bronzeadas mas também a
criatividade necessária para um eficaz aproveitamento
de todo o tipo de materiais.
Eu
saio a meio caminho por assim dizer. A maioria dos passageiros
ainda terá que trocar de transporte várias vezes
até à conclusão da viagem. Há quem
considere essas mudanças atribuladas da bagagem de um
transporte para o outro como um dos episódios mais divertidos
da arte de bem viajar!..
Agora
sigo pelas ruas, orientada pelo Sol e pelos sorrisos que se
abrem nos rostos despreocupados dos turistas, eu e eles em visita
à cidade-museu de Portugal. Por todo o lado me cercam
idiomas distintos, em frases exclamativas que soam a diversidade
cultural. E pensar que no Inverno é necessário
o andar apressado e as conversas ruidosas dos universitários
para que o silêncio e a calma das ruas se quebre.
Mas desta feita estou só de passagem. Daqui a poucas
horas volto para casa e, ao gosto da imaginação
e das lembranças, vou poder rever os estudantes ondeando
por entre os autocarros, com as malas coloridas erguidas à
cabeça qual varina carregando a sua canastra. O espectáculo
inesquecível das tardes de sexta-feira, em que uma chuva
multicolor caía sobre a estação rodoviária.
São
dezanove horas quando entro no Expresso, presenciando as situações
comuns a estes momentos que também eu vivi: uns vão
despedir-se dos familiares que partem atravancados pela bagagem
e pelas últimas recomendações, outros vêm
receber parentes e amigos, aliviando-os do peso das malas e
carregando-os de sorrisos de boas-vindas.
Alguns
são emigrantes que terminaram as férias, aproveitadas
numa visita à terra natal, e regressam agora à
sua vida rotineira num país longínquo, sentindo
um peso maior na mala que guarda a nostalgia antecipada do que
naquela onde levam os agasalhos e as especialidades locais.
Escolho
novamente o segundo piso, o que me permite apreciar o crepúsculo:
lentamente apagam-se as sombras das árvores sobre a planície
e no céu fundem-se rasgos nublosos que variam do rosa
ao violeta, intercalando tons de laranja e vermelho num fundo
azul turquesa. O declínio prossegue até que a
noite se impõe e a Lua, antes sumida no horizonte, ganha
luz suficiente para banhar os montados que ladeiam a estrada.
Na
rádio tocam "Os Filhos da Nação",
"Maio Maduro Maio" e todo o "Miracles" de
Kenny G. enquanto eu atento vagamente nos faróis dos
automóveis que circulam nos dois sentidos da via. Nesse
instante, na escuridão, lembram isqueiros acesos num
concerto ao vivo.
Não
tardo a ser invadida por uma sonolência de que só
me liberto por volta das vinte e uma horas, ao chegar a uma
estação sem esperas, numa cidade que nem sempre
considero minha.